O Cristianismo e Antiguidade Tardia

Quando voltamos a percorrer a literatura do período compreendido entre os séculos IV e V d.C., isto é, da época que assistiu, no Mediterrâneo ocidental, à queda do império romano e à sucessão dos reinos romano-bárbaros, deparamos o conceito, de uso bastante comum, de "decadência" do mundo antigo, de modo que será muito útil deter-nos sobre ele.

Decadência e fim do império romano do ocidente
O primeiro a sustentar que houve uma decadência do império romano foi o humanista Flavio Biondo: a seu ver, o início dela pode ser aproximativamente fixado no ano 410, com a invasão dos godos na Itália e o famoso saque de Roma. Montesquieu, por sua vez, reconhecia as causas da decadência no poder do exér­cito e no luxo excessivo: podemos ver nele uma acusação implícita ao cristianis­mo como força desagregadora do Império, acusação que se torna mais evidente em Voltaire e em Gibbon. Gibbon vê na nova concepção de vida propugnada pelo cristianismo um perturbador elemento de mudança para o império romano, a ponto de provocar seu fim. No século XIX, as invasões bárbaras passaram a ser consideradas pelos estudiosos como a causa principal da queda de Roma, ao passo que Marx e seus seguidores faziam-na derivar exclusivamente de motivos econômico-sociais: o sistema econômico antigo, baseado na escravidão, foi subs­tituído pelo sistema feudal.

As idéias de Gibbon podem ser aceitas ainda hoje, mas com os devidos escla­recimentos e cautelas. De fato, o cristianismo, desde as origens, contrapusera ao mundo profano e à realidade política a "cidade de Deus": isso era normal para uma religião vítima das perseguições e que se chocava cotidianamente com um poder político inimigo e pagão. Só na Idade Média, partindo da ideologia constantiniana, é que se afirmará que a existência de um reino, até mesmo de um império cristão estava nos projetos de Deus e que, portanto, serão sanadas as deficiências entre, política e religião.

O esgotamento do pensamento pagão no mundo ocidental
Mas, no século IV, a Igreja se afirma como organização totalmente autônoma, capaz de fazer concorrência ao Estado: os melhores homens, que, noutro tempo, se teriam dedicado à vida militar e política, tornando-se generais e governadores de províncias, agora optam pela carreira eclesiástica, que confere extraordinários privilégios entre os quais, o de ser julgados pelos próprios bispos e não pelas autoridades estatais. Desse modo, Ambrósio, que Censura e excomunga o imperador Teodósio, é um exemplo da mudança de perspectiva que se dera. A Igreja tende a se substituir ao Estado, os cristãos se sentem mais cristãos que cidadãos do império; os bispos fundam e administram instituições de caridade (como no caso de Basílio), organizam a defesa contra os bárbaros, porque o Estado ·abdicou desse seu dever (é o caso de Gregório Magno). Portanto, a prosperidade da Igreja é, ao mesmo tempo, causa e conseqüência da decadência do império. Talvez um fenômeno sugestivo como o do eremitismo apresente uma dupla chave de leitura: a vida as cética no deserto atrai realmente não apenas os que buscavam o silêncio e a solidão para meditar as Sagradas Escrituras, orar e fugir das insídias do mundo, mas também: mercenários, desertores do exército romano, gente perigosa para a sociedade. Foi necessário que Pacômio, Basílio e, posteriormente, João Cassiano e Bento estabelecessem regras precisas para que o monaquismo se tornasse uma fonte ulterior de poder para Igreja e per­desse sua tendência destrutiva.

Ainda no que se refere aos bárbaros, a Igreja soube demonstrar um alcance de visão maior que o do poder imperial. No Oriente, o problema, dos bárbaros foi menos premente, até mesmo porque a disparidade social era inferior e a Igreja apóia o Estado na luta em defesa das fronteiras. Por outro lado, no Ocidente, as plebes urbanas e camponesas tendiam a entrar em coalizão com os bárbaros invasores contra o Estado: a Igreja se substitui, portanto, ao Estado no relacionamento com os bárbaros, converte-os e civiliza-os.

Mas além dos fatores políticos e sociais, não se pode esquecer que, no século IV e no século V, no âmbito latino, as forças intelectuais do paganismo se enfraqueceram, até esgotar-se. A esse respeito, deve-se limpar o campo de uma idéia errada: que tenha existido um círculo de intelectuais, recolhido em torno de Símaco e capaz de se contrapor aos mais altos engenhos do ambiente cristão. Na realidade, entre os amigos de Símaco, pode-se contar Ausônio, que era cristão, mesmo que não muito ardoroso, ao passo que não comparecem Amiano Marcelino, Claudiano e Rutílio Namaciano. Claudiano, que foi definido por Agostinho como "pagão obstinado", iniciou sua carreira sob a proteção da poderosa família dos Anicii. Rutílio Namaciano, inimigo dos cristãos, escreveu seu poemeto, O meu regresso à pátria, quinze anos depois da morte de Símaco e não é nem mesmo mencionado nos Saturnais de Ma­cróbio, que, escritos por volta de 430, recordam um diálogo entre literatos pagãos ocorrido muitos anos antes. Em suma, o "círculo de Símaco" ou não existiu ou foi bem pouco representativo.

Também não é verdade que devemos a sobrevivência dos clássicos às gran­des edições críticas organizadas pelos intelectuais pagãos do século IV. Essas "pretensas" edições foram tão-só o resultado da correção da cópia pessoal de um texto, levada a cabo com a ajuda de um grammaticus. Na realidade, não há provas de uma atividade, da parte de Símaco e de seus amigos, voltada para a salvação da cultura pagã. Isso porque o Cristianismo já se apoderara dela. Baste pensar que as Metamorfoses de Apuleio, uma obra declaradamente pagã (o autor era considerado uma espécie de mago), eram lidas até por Agostinho que, entre outras coisas, é o único a ter conservado seu subtítulo, O asno de ouro.

O único gênero literário cultivado exclusivamente pelos pagãos foi, na era antiga tardia, a historiografia: a historiografia dos cristãos era algo bem diferen­te. Eutrópio e Festo escreveram para a corte do Oriente uma síntese de toda a história de Roma. Aurélio Vítor, uma história do império. Amiano Marcelino, o mais ilustre entre os historiógrafos dessa época, falando dos cristãos, não se pronuncia claramente. A historiografia dos cristãos é algo bem diferente porque é, ao mesmo tempo, história da Igreja e crônica dos inícios do mundo, com um manifesto desinteresse pelas circunstâncias políticas de Roma. No que se refere à famosíssima História dos imperadores (Historia augusta), durante muito tempo se acreditou que ela tivesse sido escrita com propósitos anticristãos. Na realidade, trata-se de uma compilação de fins do século IV, que talvez não tenha sido escrita antes do império de Teodósio, mas que pretende ser vista como pertencente à era dos Tetrarcas e de Constantino. Nela não se exprime nenhum juízo contra os cristãos, chega-se até a propor um vago ideal de tolerância, típico de certo paganismo da época.

No século IV, as traduções do grego tornam-se cada vez mais numerosas: uma das obras mais lidas dentre todas as traduzidas é a Vida de Apolônio de Tiana, de Filostrato, realizada pelo pagão Nicômaco Flaviano. Ora, a vida desse mago pagão foi lida até mesmo por Jerônimo e Agostinho: provavelmente Jerônimo tomou como modelo essa biografia para escrever suas vidas de santos. Como se vê, os cristãos substituem os pagãos nos vários gêneros literários.
O neoplatonismo se apresentou como o movimento mais vital no âmbi­to pagão: no Ocidente ele teve o apoio de Vétio Agório Pretestato, cônsul designado para o ano 385. Esse personagem, autor de algumas traduções de obras de Aristóteles, é idealizado por Macróbio, que fez dele o protagonista das Saturnais, diálogo entre doutos pagãos ambientado no ano 384 (o ano da disputa entre Ambrósio e Símaco pelo altar da Vitória, disputa da qual não há vestígio nas Saturnais), mas realmente escrito entre os anos 420 e 430, quando qualquer sinal de revivescência pagã já tinha desaparecido. Na reali­dade, até o movimento neoplatônico, que na Grécia recolheu e organizou o dissenso contra o cristianismo, logo passa a ser patrimônio comum dos dois grupos. De fato, a obra de Porfírio, Contra os cristãos, é lida com mais atenção exatamente por aqueles que eram o objeto de sua crítica. E não só: quando Constantino ordenou a destruição dessa obra, ela continuou a ser estudada e refutada. O comentário de Macróbio ao Somnium Scipionis de Cícero é inteiramente neoplatônico e, mesmo assim, alcançou um imenso sucesso entre os cristãos, que o transmitiram à Idade Média. Dessa forma, muitas obras clássicas foram redescobertas exatamente na idade antiga tardia. A obra De publica de Cícero, pouco lida à época dos imperadores (obviamente por conta de seu argumento) e citada apenas nos tratados dos gramáticos, atraiu a atenção de Lactâncio e de Agostinho, que lhe devolveram a honra de voltar a ser estudada.

Decadência e antiguidade tardia
A lenta transformação da cultura que se verifica na era antiga tardia e a passagem da civilização antiga para a civilização medieval foram, no passado, ligadas à idéia de "decadência"; apenas recentemente é que se recuperou o conceito de "continuidade": não existe uma fratura entre o mundo antigo e o mundo medieval, mas no mundo medieval se re­encontram, modificados e transformados e mesmo assim reconhecíveis, os elementos culturais do primeiro. A esse propósito, é emblemática a evolução do pensamento do grande historiador Henri- Irénée Marroux. Ele escreveu seu ensaio sobre Santo Agostinho e o fim do pensamento an­tigo em 1938, afirmando que a época antiga tardia era uma época de decadência tout court, na qual despontava, como gênio isolado, Santo Agostinho. Dez anos mais tarde, em 1949, escreveu uma "retractatio" (seguindo um procedimento típico de seu amado bispo de Hipona) de seu ensaio anterior, fazendo muitas correções; em 1977, voltou a exa­minar todo o problema da época antiga tardia e o modo de entendê-la em um ensaio cativante, mas talvez um pouco "irênico", no qual se inclinava a eliminar as diferenças entre o cristianismo e o paganismo. Esse ensaio se intitula Decadência romana ou Antigüidade tardia? (a tradução italiana, Decadenza romana o tarda antichità?, é de 1978) e a tese que ele apresenta é a de uma releitura da época antiga tardia como período de "transformação", não de "decadência". Em sua História da educação na Antigüidade, Marrou definira a Antigüidade tardia como o período da "cidade de Deus" (Theopolis), tanto no sentido pagão como no sentido cristão, contrapondo-a ao período da polis, que era o da Grécia clássica. Tratar-se-ia de um período de "pseudomorfose", ou seja, novos conteúdos culturais são introduzidos nas, formas tra­dicionais para assumir formas ou aparência similares às precedentes. Marrou, portanto, identifica o período da "decadência" em uma época posterior, ou seja, no tempo da segunda vaga das invasões bárbaras na Itália, no fim do século VI.

Cristianismo e cultura clássica na era antiga tardia
Liberado o campo do conceito de "decadência", é preciso enfrentar o problema da inegável diversidade entre mundo pagão e mundo cris­tão. A idéia de que esses dois mundos fossem contrapostos e completa­mente estranhos e hostis entre si surge apenas durante o humanismo e posteriormente se chegou a dizer que a forma literária, que permanecera antiga, teria embalado um conteúdo novo, cristão. No século XVI, e especialmente nos séculos posteriores, desenvolveu-se a idéia de uma cisão nítida entre a tradição clássica e o cristianismo. Os estudiosos modernos da Antigüidade tardia atualmente refutam essa interpretação. Na realida­de, é preciso buscar entender quais valores formais e quais técnicas de expressão eram, de vez em quando, valorizadas e aceitas pelos autores dessa época, que não são, portanto, "autores cristãos" ou "autores pa­gãos", mas, exatamente, autores da "Antigüidade tardia". Nessa época, pagãos e cristãos partilhavam uma mesma estética. Há dados culturais de base comum a todos os autores, independentemente do fato de que um deles, cristão, escreva homilias ou um outro, pagão, composições épicas. Esses dados culturais de base eram fruto de um condicionamento social sofrido pela cultura que eles receberam anteriormente, que prescindia de qualquer escolha de forma e de conteúdo que eles fizessem. O condicionamento social se deve a alguns fatos que passamos a analisar. Em primeiro lugar, não obstante a tentativa de Juliano Apóstata de excluir os cristãos do ensino e de criar uma escolha confessional pagã (tentativa de curta duração, como o reino daquele que a quisera), cristãos e pagãos tiveram no Baixo Império uma escola comum. Esta escola imprimiu sua marca de verdadeiro classicismo na mais própria acepção do termo: ou seja, formou-os por meio de um programa de leitura e de exegese de autores considerados clássicos. A própria formação de base se encontra nos autores latinos, pagãos e cristãos, e até mesmo nos autores estrangeiros como Amiano Marcelino e Claudiano, que eram originários do Oriente e aprenderam latim nas escolas de Antioquia ou de Alexandria do Egito e depois continuaram a estudar no Ocidente, onde se desenvolveu sua carreira literária. O pagão Amiano Marcelino critica o imperador Jovia­no mais por sua ignorância que por sua fé cristã (XXV, 10, 15) e admita Constâncio, apesar de ele ser inimigo de seu imperador ideal, Juliano (XXI, 16), por sua refinada educação literária. Um leitmotiv da época de Constantino e da tetrarquia foi o da renovação das letras, apoiado em um célebre panegírico pagão do final do século III, intitulado Discurso de Eumene pela restauração da escola de Autun. Essa "renovação" será entendida como retorno às fontes da cultura clássica e identificada com o ideal de restauração perseguido pela Tetrarquia. Fala-se de uma con­temporaneidade nos escritores: ou seja, dispensava-se atenção às obras contemporâneas, independentemente do credo religioso. Fontaine dá a notar que um poeta pagão como Ausônio era atentamente lido até pelos cristãos Prudêncio e Paulino. Não se deve, portanto, imaginar, no plano social, uma nítida oposição entre pagãos e cristãos: muitos cristãos, recém-convertidos, tinham uma fé débil e pouco exigente, muitos pagãos, por outro lado, tornavam-se céticos de suas próprias crenças e tradições: criava-se, assim, um modus vivendi do qual não estavam excluídas relações amigáveis entre pagãos e cristãos, como no caso de Sí­maco e de Agostinho, entre os quais houve amigos de religiões opostas, Até mesmo na pintura, a diversidade dos estilos nada tem a ver com as diversidades ideológicas. A crítica recente fala de "sobredeterminação cristã" de símbolos e esquemas de figuração de origem antiga. O subs­trato cultural comum fazia com que religiões profundamente diversas condividissem certo modo de conceber o sagrado e certa sensibilidade religiosa: esquemas iconográficos iguais foram utilizados ora por pagãos, catacumbas de Calisto, de Priscila, de Pedro e Marcelino, de Domitila. A basílica cristã, grandiosa expressão do cristianismo de Constantino, é a transformação de um edifício romano, difundido a partir da era augusta. Bianchi Bandinelli inúmeras vezes ressaltou a semelhança entre as formas da arte pagã antiga tardia e as formas da arte cristã: "Na realidade, essa pintura cristã (dos séculos III e IV)... não se distingue, do ponto de vista da forma artística, da pintura não cristã. A diferença, vê-se somente na iconografia, nos assuntos e no conteúdo. No plano histórico-artístico, deveria ser considerada junto à pintura pagã. Mas um antigo preconceito de classificação faz com que ainda seja tratada à parte ... ".

Formas literárias cristãs e antigas tardias
Assim como na era imperial imediatamente anterior, é evidente que as formas literárias da Antigüidade tardia baseavam-se no ideal e na prática da retórica. Isso é evidente tanto em Prudêncio e em Claudiano como em Lucano e Estácio, tanto em Agostinho e Tertuliano como em Sêneca e Tácito.

Os críticos do passado viam na retórica algo condenável, tachando-a de insinceridade e de artificiosidade: essa condenação derivava da contraposição, existente já na época antiga, entre retórica e filosofia, depois, na época humanística, entre retórica e dialética, e teve como conseqüência reduzir a retórica a mero estudo das figuras do discurso. Nas últimas décadas, O juízo sobre a retórica foi amplamente revisto. Realidade e retórica estão, na época antiga tardia, estreitamente unidas, unidas de um modo até mesmo indissolúvel. O processo de retorização foi geral, abarcou até os documentos da chancelaria imperial e eclesiástica e pode ser detectado até nas cartas privadas.

Naquela época, justificava-se a "retorização" pela "exigência de imitar os antigos". Essa justificativa foi muitas vezes rejeitada na época moderna porque entrava em contraste com nosso conceito de "origina­lidade": mas esse conceito é completamente estranho ao mundo antigo e até mesmo ao mundo clássico. Já dissemos isso quando falamos de Juvêncio (p. 248).

Um efeito da "retorização" foi que a prosa assumiu um colorido poético e, no sentido oposto, a poesia passou a se assemelhar sempre mais à prosa versificada. O papel da escola nessa caracterização foi mui­to significativo. Como o afirma Cameron, a iniciação à poesia se dava “não por obra das musas no monte Hélicon, mas por obra dos gramaticus da aula escolástica”. Muitos grammatici eram também poetas.

Fazia parte do complexo retórico todo o patrimônio mitológico; não é de admirar que ele esteja presente até mesmo em autores cristãos. O texto poético tinha necessidade da mitologia, sem que se deva ver nisso uma adesão disfarçada à religião antiga. Além disso, a elaboração retórica torna difusos os limites entre os gêneros literários: às vezes, gêneros literários diversos são, por assim dizer, "entroncados". Contudo, falar de "retorização" implica que se saiba com clareza o que entendemos pelo termo "retórica". Os estudiosos provenientes da filologia clássica têm entendido a retórica como "a arte do dizer", com uma visão um pouco limitadora; Quacquarel1i, por sua vez, procurou cavar mais fundo, descobrir suas raízes baseando-se também no uso que dela fazem os escritores cristãos, como Agostinho e Cassiodoro. Ele concluiu que "a retórica é tanto mais universal quanto mais natural", ou seja, corresponde à estrutura do intelecto e da psicologia humanos.

Nem mesmo os cristãos se subtraem à imitação dos clássicos e, conseqüentemente, à retorização geral. Mesmo salvaguardando o patrimônio cultural que é específico deles (a dupla bibliotheca sacra, ou seja, a Bíblia e os autores cristãos a partir de Tertuliano), os cristãos sofrem o fascínio estético das obras clássicas e o "belo" também é para eles uma categoria fundamental. Além do estudo da retórica, há muitas outras características comuns a cristãos e pagãos (e que, portanto, devem ser definidas sobretudo como características simplesmente "antigas tardias").

Na Antigüidade tardia, assiste-se ao evolver das formas literárias: as formas antigas sobrevivem com um novo aspecto. Até mesmo nesse caso, é necessário reafirmar que não existem no século IV formas literárias exclusivamente pagãs ou exclusivamente cristãs (talvez com uma única exceção, a homilia; mas isso se deve à origem desse gênero, nascido como exegese da Torah na sinagoga). O escritor cristão não deve escrever enquanto cristão, a partir do momento em que, desde muito tempo, até os textos sacros tinham sido objeto de elaboração literária (alguns livros do Antigo Testamento tinham sido escritos em grego, segundo os modos e as formas da literatura helenística). Na Antigüidade tardia, assiste-se ao fenômeno de uma dupla conversão: a cultura antiga se converte em cultura cristã, e o cristianismo se converte em cultura antiga. Para os cristãos, a forma não é mais algo de estranho com o qual revestir um conteúdo novo. Nessa época, a linguagem é unitária, tanto quanto o gosto: a tipologia das formas literárias, além de Antão, o monge do deserto, e a do mago Apolônio de Tiano, entre a hinódia cristã e a hinódia pagã, entre os panegíricos imperiais e os dos mártires, entre as cartas de Ambrósio e as de Símaco.

A essa altura, podemos perguntar-nos se o que estamos afirmando não representa uma contradição com aquilo que sempre foi procla­mado pelos cristãos: isto é, que a "conversão" implica urna mudança radical da própria personalidade. Na realidade, até mesmo um rigorista como Tertuliano não exclui que o cristão se interesse pelo mundo em que vive. Além disso, especialmente a partir de Constantino, "con­verter-se" já não significa abolir os valores sociais nos quais anterior­mente se acreditava, mas orientá-los de modo diferente. Os letrados cristãos não consideram que exista uma dissensão irremediável entre o fim, que é novo, e os meios, que são os da criação literária tradicional. Isolar o estudo da literatura cristã em nome de seus conteúdos, seja com propósitos anticlericais e anticristãos (como o fizeram Voltaire e Gibbon), seja com intentos estéticos (por desprezo por tudo o que seja não-clássico ou pós-clássico, corno o fez todo o século XVIII, ou não-"original", corno o fez o século XIX), seja com propósitos apolo­géticos (para ressaltar a absoluta originalidade do pensamento cristão e de sua expressão), não faz o menor sentido. Acabar-se-ia por tomar como expressão original do pensamento cristão aquilo que é típico do pensamento antigo tardio e que se exprime nas formas literárias dessa época: urna época de angústia, corno a define Dodds, da dor de viver, corno o diz Bianchi Bandinelle, do estranhamento em um outro mundo, corno o afirma Brown. Na estética desse tempo, a magnitude silenciosa e a nobre simplicidade do mundo clássico não podem ter lugar (Fontaine).

Por MORESCHINI, C. & NORELLI, E. Manual de literatura cristã antiga grega e latina. São Paulo: Santuário, 2005.


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